quinta-feira, 26 de maio de 2016

mofo e cupim

o que excede
deixo azedar
como comida velha mofando na pia

o que é ausência
deixo ter um consolo
como quando ligo a televisão pra fingir ter gente comigo

o que permanece e o que corrói com o tempo?
a minha solidão.

a cólera que o tempo me trouxe foi a certeza de um câncer
que se deforma na pele e que perfura o estômago
vômitos embrulhados, abortados
de quando o mundo me parecia assimetricamente belo e perigoso
e eu dizia que valia a pena se arriscar
porque a coisa que mais me dava medo era estar só
vale o risco, eu dizia, o peso, e me debruçava sobre corpos vazios

eu achava que a solidão não era um amigo
mas sempre que abria a porta era seu rosto que eu via
a solidão envelheceu comigo
enrugou
murchou
envergou e pendeu pro outro lado da cama.

terça-feira, 17 de maio de 2016

ser fluxo

Fico aqui, parada, mexendo no meu chá, esperando que a resposta entre pelo meu ouvido, como um ácaro ou como um parasita, e que sussurre lá no fundo uma pista, algum som, que uma semente se aloje, que me faça beber o chá ao invés de contemplá-lo, como quando balanço meus dedos e crio ondas de camomila e penso estar dançando com os átomos do tempo, que pulsam na pele, sem que tenhamos consciência, mas consciência é uma coisa que pareço ter até mais do que deveria, seria essa minha ruína, ter consciência, às vezes nebulosa, às vezes precisa, de mim mesma?
Me sinto encharcada e sinto que me paralisa, quase imóvel, e fico procurando o sentido das coisas profundas, do que sinto, das coisas primeiras que não consigo tatear, a essência por trás da essência, o sonho que dorme dentro de outro sonho, sempre tenho a sensação de incompletude, como se estivesse ou tivesse que procurar a alquimia dos primeiros verbos, das primeiras composições químicas, dos sentimentos intrauterinos que se calcaram em meu inconsciente e não consigo atingi-los, essa consciência me deixa absorta e na mesma sintonia me abre, abissalmente, para os mistérios e para os devaneios mais ridículos e extravagantes, extravaso, porque minha imaginação e minha intuição tem pernas maiores do que as minhas e andamos assimetricamente, descompassadamente, como se a qualquer momento fôssemos cair uma na outra, se atropelando, numa encruzilhada de pernas finas e fracas. 
Eu sei que pareço não estar fazendo sentido e pode ser que até para mim mesma eu nunca consiga encontrar as sílabas e tônicas e adjetivos e pronomes que consigam elucidar a força que meu pensamento, que essa consciência do real e do irreal, me sobrepõe e se impõe como um ponto de exclamação, talvez eu nunca consiga me fazer clara, porque aqui há um fluxo, que não tento controlar, de minha própria força e inspiração, de meu mundo inventado e do mundo que sinto com a ponta dos dedos, claro, há colisão, pois cada um, separadamente, me são insuficientes, e juntos nem sempre fazem sentido, às vezes não se beijam, não se tocam, e assim pareço estar num espaço sem gravidade, onde não tenho muito controle sobre meus movimentos e saio esbarrando nas quinas das coisas.
Mas o que me dói é essa consciência plena, desses dois mundos, de mim neles e sobre meus esforços pálidos em criar espaços concretos de auto expressão, o que quero dizer é que meus poros estão sempre abertos, só absorvo, sem filtro e isso machuca minha sensibilidade, o que quero dizer é que às vezes engulo já estando cheia, o que quero dizer é que arranha minha pele o peso do concreto, do palpável, do mundo de possibilidades reais, o que quero dizer é que coexisto, o que quero dizer é que há uma ânsia de vida, um vômito abortado, uma náusea causada pelo tempo e pelas insignificâncias, o que quero dizer é que há um mundo em que minha pupila se dilata e um que me esforço para abrir os olhos, o que quero dizer é que às vezes sou quem eu quero ser e às vezes sou o que penso ser, e há consciência, até quando durmo.