segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Sangue e Fogo

Com doses cavalares, atravessas as penumbras e murmúrio de minhas sombras, projetadas com escândalo e suor, nas paredes disformes do meu quarto e sobre os lençóis molhados pelo roçado dos olhos nos olhos, só porque insistes em me marcar à dentadas e com silenciosas impressões digitais por todo o corpo acariciado em demora. Fruta sem caroço que me lambuza os fins de tarde e os recomeços, todos eles, enquanto fico limpando, entre a unha e a carne, o tempo que se acumula despretensiosamente e pede ao corpo pra ser hospedeiro de suas trapaças e de sua infinda ironia. É tudo uma grande brincadeira? de imprecisão e de incertezas que estreitam os intestinos. -Onde encontraremos o extraordinário? -Bem aqui! Entre os escombros de nossas entrelinhas e das pequenas pedras embaixo da cabeça, porque insistimos em querer ver o céu de frente, de peito aberto pra escurecermos.

domingo, 25 de setembro de 2016

Juízo final

Nojo é um verbo que tirei do meu calendário, assumi o escárnio que os outros descartam em mim e escarro, cada cusparada é fecunda. Sou a palavra aberta, encruzilhada na América, de becos, vielas, ruas asfaltadas e esgotos a céu aberto, tudo queima perto da linha do equador e minha pele morena reluz melanina de sabor intenso. O olho permanece aberto habitando cada palavra desse vocabulário que transgride e assopra e grita, vocabulário mitológico, serpentes, medusas e harpocrate, eros me acerta certeiro no clitóris. Eu sou o horror de cada boca salivante que não beijei, anunciada pela trombeta do apocalipse, e a pomba gira e revira meus olhos pra me vestir de vermelho, boca e sexo, a língua afiada. Essa cidade é um deserto de almas vivas e desabitadas. Deus não me pune, mas me deu o inferno, eu não salvo ninguém, o céu é um condomínio fechado de fichas marcadas. Mas quando a pele arde e me olham torto, entortado mundo dos outros, eu lembro que gemer alto é gostoso, e a benção de todos os santos eu levo no pescoço. Na quaresma tive uma anunciação divina, a natureza dizia 'seja!!! minha filha, como poesia intrauterina e ria e ensine os outros a rir também', agora estou em paz, com deus e o diabo, pelo meu corpo, pela alma e pelo tempo, até o fim das eras.



sábado, 16 de julho de 2016

Entrelinhas e Reticências

Escapo
na aterrissagem do olho sobre a nuca
que se insinua feito palavra lânguida
eu penso, me chupa
me lambe, lambe a lambida minha
encharca comigo
o ouvido
e esses verbos absurdos de prazer
que dançam e dançam
nus sobre a pele aquecida
abre a boca
pra que eu penetre
com poesia fervida
que me escorre pelo pescoço
feito soluço
ritmado
um ah! ah!
sorria agora, mostre os dentes
se abra, me abro
e assista
eles tocam-se
despretensiosamente coléricos
com mil tentáculos
escapo
o olho entorpecido
se fecha, se abre
umedecido
segue o fluxo dos risos
estou fora de mim
e finjo controlar o magma
transbordando
entre as coxas
entrelinhas
entre no meio das coxas
intumescido
pulsando reticências. . .

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Anoiteço

Algumas vezes eu fico parada, quase imóvel, antes de dormir e por um instante consigo ouvir o acúmulo dos pequenos barulhos que ressoam e reverberam com o todo, com o resto das coisas, um barulho somado a outro num movimento circular. Fico então atenta e não consigo decifrar um som que se destaque e me concentrar nele, não consigo, ouço o acúmulo do tempo e das distâncias, fico atenta a esse som indecifrável, o chamo de 'o som do universo enquanto se movimenta', mas talvez, bem talvez, seja só o barulho dos meus pensamentos trafegando sem descanso enquanto tento acalmar cada célula do meu corpo-hospedeiro. Talvez eu abrigue em meus ouvidos, nesses minutos onde a madrugada se dissipa, o peso de cada gota de água enchendo o copo de alguém que ainda está com sede a essa hora, ou do atrito entre o asfalto e o os pneus de quem ainda está voltando pra casa ou do lençol fino roçando nos pés de quem está dormindo no chão logo ali na esquina, talvez também seja o sussurro baixinho das peles nuas que se encostam uma sobre a outra, essa melodia do cotidiano que ecoa nas paredes do meu quarto e me fazem ter a estranha sensação de que não estou sozinha, apesar de. Então acordo desnorteada com a sensação de que um outro corpo me habita ou uma outra vida, me pergunto se sou quem sou e não obtenho resposta, ainda quanto estou prestes a mover os cílios e deixar a luz penetrar na pupila, me pergunto se estou morta, se é assim viver, esse acúmulo...esse silêncio que não atinjo, por deus, ainda bem! Esse silêncio deve ser a morte. Me amanheço. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

Pupila

uma agudez me atravessa os olhos
entorpecem
e me sinto inflamada, embriagada
tão penetrante
como quando me penetras com palavras doces
e falsas
e com teu verbo no imperativo
cerro os dentes, travando um sorriso
que me escorre pelo corpo
lânguida e desmaio
em abraços gelados
que me aquecem por debaixo da derme
fecho os olhos
eles queimam, como eu
quando te sinto me observar imóvel e colérico
se estou prestes a gozar.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Garota Dinamarquesa

Procurei mentiras onde podia me abrigar
qualquer trapo me servia
algo que se escondia bem no meio das pernas
eu era uma mulher no corpo de um homem
e me adoecia as fantasias que usava
era ultrajante que aquele terno roçasse tanto na minha pele
feito urticária
aquela voz que não era minha me seguia aonde quer que eu fosse
a boca sem batom
o meu nome não era meu
quando eu sem querer não atendia não era por mal
eu não me reconhecia quando me via no espelho
eu só vivia nos sonhos
ou quando sozinha
tive outro dia um dos sonhos mais lindos
eu saía na rua nua e todos me olhavam
eu era eu e me reconheciam
me debatia com meu feminino aflorado
correndo pela cidade rindo
com um riso que abria feridas
pra deixá-las sangrar e cicatrizar
naquele sonho morei eternamente
jurei não acordar nunca mais
naquele sonho eu te beijava e tu me beijava de volta por quem eu era
e eu era a mulher que sempre sonhei ser e não podia
morri pra viver de sonhos.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Meu nome não é Maria


Meu clitóris enxerga toda a cegueira de vocês. Nos devaneios múltiplos pedem que eu grite enquanto gozo, querem ser avisados que seu ego vai morrer intacto, emudeço. Gozo silencioso. Descobri que poderia gozar aos cinco anos e me fizeram sentir nojo, agora pedem que eu abra as pernas sem pudor pro amor. Como, se eu aprendi a dizer que não gostava tanto assim? Como, se me tocar sempre foi um ato de condenação? Como poderia extrapolar as fronteiras da minha imaginação se os limites que me deram possuem arames farpados, muros mais altos que eu e soldados espreitando minha nudez, prontos pra atirar quando minha vulgaridade não os entretém. A boa moça da cidade não goza. A linda moça da cidade não caga. Tão fora da realidade que deve ser por isso que eu sempre penso estar num sonho, num filme, num livro. Padronizaram o sexo e todo desvio é perverso, o clitóris é banido. E há um exército de indícios escondidos, de arquivos queimados, de orgasmos culpados, de desencontros rítmicos. Foi impedido aos homens todo ato de elevada erotização por negar o feminino.



quinta-feira, 26 de maio de 2016

mofo e cupim

o que excede
deixo azedar
como comida velha mofando na pia

o que é ausência
deixo ter um consolo
como quando ligo a televisão pra fingir ter gente comigo

o que permanece e o que corrói com o tempo?
a minha solidão.

a cólera que o tempo me trouxe foi a certeza de um câncer
que se deforma na pele e que perfura o estômago
vômitos embrulhados, abortados
de quando o mundo me parecia assimetricamente belo e perigoso
e eu dizia que valia a pena se arriscar
porque a coisa que mais me dava medo era estar só
vale o risco, eu dizia, o peso, e me debruçava sobre corpos vazios

eu achava que a solidão não era um amigo
mas sempre que abria a porta era seu rosto que eu via
a solidão envelheceu comigo
enrugou
murchou
envergou e pendeu pro outro lado da cama.

terça-feira, 17 de maio de 2016

ser fluxo

Fico aqui, parada, mexendo no meu chá, esperando que a resposta entre pelo meu ouvido, como um ácaro ou como um parasita, e que sussurre lá no fundo uma pista, algum som, que uma semente se aloje, que me faça beber o chá ao invés de contemplá-lo, como quando balanço meus dedos e crio ondas de camomila e penso estar dançando com os átomos do tempo, que pulsam na pele, sem que tenhamos consciência, mas consciência é uma coisa que pareço ter até mais do que deveria, seria essa minha ruína, ter consciência, às vezes nebulosa, às vezes precisa, de mim mesma?
Me sinto encharcada e sinto que me paralisa, quase imóvel, e fico procurando o sentido das coisas profundas, do que sinto, das coisas primeiras que não consigo tatear, a essência por trás da essência, o sonho que dorme dentro de outro sonho, sempre tenho a sensação de incompletude, como se estivesse ou tivesse que procurar a alquimia dos primeiros verbos, das primeiras composições químicas, dos sentimentos intrauterinos que se calcaram em meu inconsciente e não consigo atingi-los, essa consciência me deixa absorta e na mesma sintonia me abre, abissalmente, para os mistérios e para os devaneios mais ridículos e extravagantes, extravaso, porque minha imaginação e minha intuição tem pernas maiores do que as minhas e andamos assimetricamente, descompassadamente, como se a qualquer momento fôssemos cair uma na outra, se atropelando, numa encruzilhada de pernas finas e fracas. 
Eu sei que pareço não estar fazendo sentido e pode ser que até para mim mesma eu nunca consiga encontrar as sílabas e tônicas e adjetivos e pronomes que consigam elucidar a força que meu pensamento, que essa consciência do real e do irreal, me sobrepõe e se impõe como um ponto de exclamação, talvez eu nunca consiga me fazer clara, porque aqui há um fluxo, que não tento controlar, de minha própria força e inspiração, de meu mundo inventado e do mundo que sinto com a ponta dos dedos, claro, há colisão, pois cada um, separadamente, me são insuficientes, e juntos nem sempre fazem sentido, às vezes não se beijam, não se tocam, e assim pareço estar num espaço sem gravidade, onde não tenho muito controle sobre meus movimentos e saio esbarrando nas quinas das coisas.
Mas o que me dói é essa consciência plena, desses dois mundos, de mim neles e sobre meus esforços pálidos em criar espaços concretos de auto expressão, o que quero dizer é que meus poros estão sempre abertos, só absorvo, sem filtro e isso machuca minha sensibilidade, o que quero dizer é que às vezes engulo já estando cheia, o que quero dizer é que arranha minha pele o peso do concreto, do palpável, do mundo de possibilidades reais, o que quero dizer é que coexisto, o que quero dizer é que há uma ânsia de vida, um vômito abortado, uma náusea causada pelo tempo e pelas insignificâncias, o que quero dizer é que há um mundo em que minha pupila se dilata e um que me esforço para abrir os olhos, o que quero dizer é que às vezes sou quem eu quero ser e às vezes sou o que penso ser, e há consciência, até quando durmo.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

diário de viagem

tua saliva tem espinhos
que me atravessam a pele salivante
te descasco em terras febris
com os pés em brasa sob um solo cinza
queimado pelo sol
retiro em camadas a casca grossa
para sugar o suculento profundo
quando me afundo
em tua carne latejante
como esponja
chupando todo teu ato líquido em movimento
me nutrindo e me encharcando
germinando no estômago
gota a gota
a doçura ejaculada
és um cacto suculento no meu ser.tão profundo

quinta-feira, 14 de abril de 2016

em quarentena



em cada dedo, tentáculos, percorrendo fugas sobre tua pele morna, aquecida. e com as pernas suspensas no ar, entrelaçamos o céu e o chão, no ritmo do vento. com as sombras que entram sem permissão pra anunciar partes do seu corpo que acarinho com fôlego, com violência e também com os sonhos. as nuvens tinham sabor e pareciam me tocar quando olhava pra cima, do azul ao vermelho, que borbulha por dentro. alguns sussurros me escapam aos ouvidos, só pra ecoarem e se dissiparem com os átomos que dançam no tempo, pra afastar a distância entre as mãos. ritmo, pulsa. ritmo, segura. ritmo, solta. aquele momento que precede a primeira gota a cair e começar a chover com os braços abertos, mas o coração permanece costurado entre os pulmões. pulsando forte, mas sem escapulir. e minhas mãos atadas ao redor da tua nuca, tecendo a prece dos corpos, como que pra continuar a aquecer o que está fervendo e então queimar-se. faz um tempo que só o teu beijo me aquece.
amor inventado, poeta mentiroso.

terça-feira, 12 de abril de 2016

Peru

Quando eu partia a lua estava tão laranja que parecia arder só de olhar, quando estava atravessando a floresta ela explodiu bem na minha janela e finalmente o céu se ardeu, nesse pássaro metálico que voa descobri a ponte entre as semelhanças. O ar é seco a ponto de ferir e as estradas são tão sinuosas como os caminhos que meu coração decide perseguir, aqui criei novas lembranças e as juntei com as antigas. As estradas são amareladas, como se estivessem pegando fogo e há mares sem fim de montanhas, sinto o vermelho e o sonho borbulhando em minhas pernas. Há tantos lugares que preciso ver, mais do que ver, tocar, sentir. Sempre que viajo reencontro algum pedacinho de mim que outrora tinha deixado o vento levar pra longe. Cidades, pessoas, culturas que fascinam, mas é quando encaro a natureza que minha alma se eleva, meu espírito encontra paz e sei que minha carne faz parte do todo, infinitamente imenso. transbordamentos. Peru é fria e quente, linda e feia, peru não me deixa respirar direito. De gente que coloca a mão na terra, que carrega nas costas as cores de sua cultura, de gente que me lembra do pacto que fizemos um dia com a natureza, de olhos puxados e os cabelos mais negros que a própria escuridão, me lembra o quão sou índia e o quão não sou. Um chamado a uma parte de minha ancestralidade que foi apagada, violentada e esquecida. A mãe terra, e eu me lembro mais uma vez que sou filha da natureza, da terra fecunda, das pedras empilhadas uma sobre a outra em adoração, a vida que respira junto com a minha é minha.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Chumbo, Ouro, Flores e Amuletos

Um presente de chumbo, dado entre meios de aços invertidos, que convertem na divergência. Um pedaço de asfalto que escarro pela boca, me atravessava a garganta que abriga minha voz fina e trêmula, por tanto aguentar pedrada, quando insisto em continuar atravessando. Atravessa em mim o eu profundo, tão inocente como quando sou apenas um átomo. Sigo, carregando uma pele em erupção, me revestindo de bolhas de fogo purulentas que cintilam, me abrigando de flores e falso ouro e amuletos mitológicos. Me presenteiam com maçãs apodrecidas, jogadas ao chão enquanto caminho, como uma oferenda ao meu escárnio, eu sou aquela que come ao lado de eva, o feminino é o pecado original. Envergo e me aproximo tanto ao chão que penso que mais um passo e quebraria todos os meus dentes, com essa força que me exorciza e me mantém imaculada. Serpentes não atravessam meu ventre, intacto, ele sangra. Como sangro em cada esquina, pavimentada e rebocada, de azulejos coloridos e com buracos de balas, atravessando a noite numa corrida assimétrica entre minhas pernas e meus pensamentos. No meio, o medo, me fazendo tropeçar. Mais um dia que gasto poesia dentro, silenciosa, silenciada, se transformando em mim feito corpo apodrecido e enterrado, mais um dia que vou abrindo à bofetadas um outro caminho que me caiba. Devolvo esse chumbo que me pesa o bolso e me estanca, sigo atravessando.

terça-feira, 22 de março de 2016

Erótico I

Que gostoso gozar no teu ouvido, encharcando de saliva os sentidos, deslizar e encontrar teu pau duro com as mãos, afundar a língua quente e te penetrar no mundo dos sons de minhas poesias absurdas e gemidos. Sussurro que quero mais. A boca salivando te faz gotejar, pingo a pingo, vou sentindo como é doce e amargo teu sabor. Te afundas em minha boceta com teu pênis entrecortante, de uma fúria lenta, que me dissolve pouco a pouco.  Descamando no lençol que manchamos retiro minha segunda pele e é só agora que minha nudez faz sentido. Me tomas em teus braços e vejo tua pupila se abrindo pra eu entrar com mais um gozo escorrendo pelas coxas, amoleço, mas ainda vibramos. Engraçado como as pontas dos dedos parecem ter mil olhos, mil línguas, mil sensores pra te absorver. Suspiramos no último movimento líquido e transbordamos.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Qual dor fica mais bonita na vitrine?

Ando tão seca
que qualquer escarro sobre minha pele
evaporaria instantaneamente
sugando todos os átomos líquidos
Ando tão vazia quanto um buraco negro que tudo quer engolir pra se tornar escuridão
inerte, amorfa.
Ando apodrecendo nas esquinas dessa casa suja
a poeira adentra meu olfato apenas pra me fazer espirrar
assim me movo, de um lado a outro da cama
Já tentei de tudo
drogas, religião, sexo, ler, terapia, acreditar nas pessoas
mas não preenche esse vazio que sinto
e me espanca tanto
que o corpo não lateja, já estou dormente
A única coisa que se aproxima de uma pretensa salvação é escrever
escrevo como uma amputada
como uma faminta
como uma esquizofrênica
como uma histérica
como uma pagã
como uma mulher
Se eu pudesse dizer todos os verbos que conheço, eu faria sentido?
Você me compraria se visse minha dor exposta numa vitrine?
eu nem sou tão bonita assim
nem tão feia
Você ainda me amaria se me visse chorar?
A dor que carrego pesa os ombros e os olhos
e por isso fecho os olhos pra não ver
pra não enxergar a minha impotência
a minha solidão
pra não sincronizar com as dores alheias
os deixo morrer nas esquinas dessa cidade feia
enquanto me consumo em silêncios que devoram meus órgãos e minha vitalidade
nas esquinas desse quarto emaranhado
há três semanas não troco os lençóis.


domingo, 21 de fevereiro de 2016

O sonho dentro de um sonho

Num sono que transcendeu minhas lembranças tua voz ecoava. Te tateei no escuro, avançando com cautela as curvas que teu rosto fazia e te senti sorrindo, igual aquele dia de domingo que a janela com um feixe de luz abria espaço no quarto pra iluminar aquela cena, uma iluminação turva me penetrava na boca entreaberta de meu sorriso ao te ver dormindo, e eu te lia com o coração de uma criança. Aquele foi o melhor tempo de abril, abriu entrecortante uma lembrança bonita que eu tenho de você, e eu tenho muitas, porque ainda mora no meu ouvido o teu sotaque e ainda sinto o sabor de minha ingenuidade, é que parece que quando te conheci minha carne se dilatou e eu fiquei maior, no movimento em C daquele abraço em ruas coloridas enfeitei teu afeto e você me trouxe novos sons, pra dançar sozinha em nossos desencontros e pra fazer correr no aeroporto tentando te achar. Tinhas um azul tão profundo que me fazia sentir o gosto do mar que nos separava, me acertava em cheio entre o pulmão e o estômago, e eu ia tirando em camadas, fio a fio, teus cabelos pra acertar tua boca mais uma vez, num eu te amo atropelado que nos encharcava os olhos, eu nunca vou esquecer quando em meus braços te vi chorar feito menino, e assim pra sempre tua lembrança será um sonho dentro de uma lembrança dentro de um sonho, você me deu o sonho, e enquanto tínhamos fôlego o vivemos, mas agora quando acordo estou nos braços de outro alguém. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Voinha mandou eu buscar dois dedo de óleo e uma xícara de arroz

Minha avó não sabe ler
mas aprendi a ler nos verbos dela
aprendi a soletrar carinho
cada palavra errada tinha um sabor diferente
de feijão gostoso, de dindin de biscoito, de panqueca e tapioca
ela nem sabia que levava a poesia nas mãos
ia tecendo fio a fio na sua máquina velha
tapetes coloridos pra enfeitar os pés
posso vê-la deitada sobre um sofá de fuxico
falando com a novela

E o seu jeito doido de atravessar a rua
de ter ciúmes
de se meter em briga
de criar teias complexas de amor
de ter uma saúde de ferro
mesmo com a osteoporose corroendo os ossos
Envolvida nas lembranças dos antigos namorados
dos vestidos, dos sapatos
do olhar azul lançado sobre ela na varanda de sua casa

Queria poder saber como foi pra ela pela primeira vez se sentir bonita
como foi que ela viu o lobisomem
como foi que ela criou numa casa de um quarto só minha mãe e meus três tios
como foi segurar nos braços sua primeira neta

Toda sua história embalada à uma cantiga antiga do sítio
lembrança de menina
que metia a mão na terra
e que fecundava sob o sol escaldante
uma poesia bruta, atropelada, de vocabulário mitológico
e que transbordava sob suor e lágrimas
o sentimento de seus melhores frutos

Por sua imaginação ilimitada eu tenho convicção que minha avó é uma artista
vó, como é envelhecer?


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Conte-me um segredo que eu não saiba

Dentro dessa caixa há um segredo sujo e febril
de noites insones
de noites desgastadas
gastas em suor
impregna a língua quente
a pele se dissolve no céu da boca
Há aqui o registro de um ataque epilético
de uma demonstração leprosa de afeto
a carne lateja, forte e duramente
entra em colapso com os cinco sentidos
E o que é o sentir?
Dentro dessa caixa há um desejo incendiário
o desejo de mais
há fome
por algo que perfure
algo que penetre
que aprofunde
que machuque
que transborde
algo que vicie.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Notas sobre ele

lembranças carcomidas por um surto de mofo e cupim
quinquilharias das mobílias velhas de um quarto
que um dia abrigou nossas juras de amor falsas
cada vez que entro no quarto
sinto o cheiro em carne viva
entranhado
apodrecendo no olfato
vejo o movimento das coisas
pressinto com os sentidos
vejo vultos fazendo sexo como se fossem cegos
percebo que cada parede tem uma frase tua
algum olhar fixado, como se fosse um quadro
não vou mentir que sempre abro o quarto
na tentativa de desvendar teus mistérios
pra mim já antigos
mas acabo lembrando das fotos que fiz na cabeça enquanto dormias
ou enquanto esperavas a última cena
saio cambaleando, como se tivesse embriagado
tropeçando no passado
mas assim que fecho o quarto, rezo pra nunca ter amnésia.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

É filha de quem?

Nasci de uma parideira de quadris largos
meu primeiro banho foi dado por uma benzedeira que morava ao lado
Desde pequena nunca tive a sorte que gente bonita tem
mas minha mãe me amostrava pro mundo como uma princesa
eu sempre ia vestida de branco
ela dizia que eu era um anjo que alumiava o céu negro de todos os dias dela
Eu vivia de pés descalços
mas bicho geográfico só peguei uma vez na vida
coçava feito o demônio!
como aquilo tão pequeno abria caminho na minha pele?
Eu devia ser igual àquele parasita no tecido do mundo
Eu sempre andei devagar, mas meus olhos sempre estavam em chamas
deve ser por isso que são tão pretos, queimados
porque já tinham pegado fogo nas outras vidas que tive antes de nascer
Eu sempre lembro da minha mãe me anunciando no beco
gritando meu nome pra comer um feijão preto sem gosto que ela fazia
Nasci filha de parideira
das pernas finas
que trabalhava o dia todo e em casa mais ainda
por isso que é largo o meu amor por ela e por toda aquela inocência bruta que nos arrudiava.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Notas sobre ele

Efeito esterilizador
pra uma dor estéril
Cada vez que me tocas
adoeço em febre
um nervo se obstrui
E depois que adormece teu pênis já pálido dentro de mim 
temo que me lavar não será suficiente
pra apagar teus vestígios
A olho nu
enxergo com microscópio
vejo todas as feridas
tenho um rombo no ego
O que sobrou de você 
apodrece no ventre
é a tua mentira que meu corpo tanto deseja
É louco achar que sempre engravido de você?
É um feto lindo que aborto
que nunca existiu
Me sinto infectada 
morando em sonhos dilacerantes
que me rasgam a pele
E por mais que eu me lave
que troque os lençóis
que lave a roupa que sujei
ainda estás lá
impregnado no quarto
Sempre voltas pra me manchar
pra me alimentar em doses homeopáticas com um amor dissimulado

domingo, 10 de janeiro de 2016

Abutre

Venho perseguindo ratos medíocres
espíritos zombeteiros bêbados
venho caindo na graça dos esgotos a céu aberto
meu coração é uma viela
e faz tempo que o carro do lixo não passa por lá
Estão amontoados todos os corpos que amei
já sem vida
sobrepostos, empilhados um sobre o outro
e as lágrimas que um dia chorei por eles tornaram-se chorume
A escuridão me fascina tanto que não há luz nos caminhos que persigo
tenho uma fome corrosiva por todas as mentiras
compro mentiras, pago com o corpo por elas
Saio farejando em busca de uma sobrevida
de um moribundo
porque sei que assim não teremos muito tempo juntos
que eu me machucaria com o fim já próximo
Eu vivo com os fins, o começo é só uma lembrança distante
um sonho supérfluo
porque o meu amor é aquele de febres e solidões
não sou melhor que um abutre

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Notas sobre ele

Derreto, escorre, vira rio,
com o riso viro mar.
Me tiras ao avesso, me desdobras,
me pega, me puxa,
me atiras ao labirinto dos lençóis mais macios que minha pele já sentiu,
que é quando tua pele toca a minha.
E aí começo a gotejar, me derramo,
me esparramo, transbordo,
até que você começa a navegar,
e aí eu rio por dentro,
meu corpo começa a gargalhar,
trêmulo, ele dança.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Odeio legendas de romances

Não vou me culpar pelas histórias de amor não vividas, eu sou de domínio dos astros, da terra, dos ancestrais, do mistério antigo, eu não vou me culpar se sei entrar e sair da casa dos prazeres sem anotar o endereço pra poder voltar, ou se tantas vezes eu voltei à mesma casa e a encontrava vazia, sem dono, sem ninguém, só paredes pra exercer minha solidão, algumas vezes bati à porta e só o que tive foi um beijo demorado, cada um do lado do portão, sem poder tocar-se de verdade, eu não vou me culpar pelas histórias como elas são, são histórias todas elas, elas todas cabem na palma da mão, não vou me culpar pelo sim e pelo não, cada história pode ser de amor, de alguma forma ou de outra, talvez todas sejam, não sei bem, eu sei que não há culpa quando o amor morre, quando a paixão morre ou se ela se acende novamente e não vira nada mais do que lençóis amassados numa casinha que alugamos e que de vez em quando nos encontramos lá, como amantes, que nunca poderão estar juntos, que nunca andarão de mãos dadas, eu não vou me culpar se a história foi assim meio torta, mal pintada, sem reboco, sem azulejo, o tijolo também levanta paredes mesmo que não tenham nada que as enfeite, eu não vou me culpar se não tivemos mais histórias, se tivemos só uma, se foi ruim, se tivemos várias mas que nunca teve um fim, que nunca deu em nada, nadinha, eu não vou me culpar se desperdicei o tempo, os beijos, o suor, a saliva, o carinho, o afeto, se o afeto se transformou em desafeto, em silêncios, em indiferença, cada história tem seu valor, não cabe à você que a lê julgá-la, não cabe à mim, personagem de minhas tramas, não valorizá-las, cada história é o que é, e eu sou o que sou em cada uma delas, eu não vou chorar se você nunca mais quiser abrir a porta da tua casa, ou se você até me xingar, não vou me culpar se eu sempre digo sim, cada história tem um lar, mesmo que não seja de amor.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Quando colido em direção aos teus beijos

Eu queria poder escrever em suor, saliva, sêmen e sangue todas as mentiras que você escreveu em meu corpo com o seu.
Queria poder secar aquele lençol que manchamos, secar as imagens, a textura e os beijos que jurei serem apaixonados.
Quantas mentiras há de ser inventadas com as pontas dos dedos?
Escritas nas costas, nas coxas, na nuca.
Por que as mentiras resistem ao calor?
A carne contrai, os corpos entram em negação e na cama fica apenas o amassado dos lençóis,
vestígios da colisão.