segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Sangue e Fogo

Com doses cavalares, atravessas as penumbras e murmúrio de minhas sombras, projetadas com escândalo e suor, nas paredes disformes do meu quarto e sobre os lençóis molhados pelo roçado dos olhos nos olhos, só porque insistes em me marcar à dentadas e com silenciosas impressões digitais por todo o corpo acariciado em demora. Fruta sem caroço que me lambuza os fins de tarde e os recomeços, todos eles, enquanto fico limpando, entre a unha e a carne, o tempo que se acumula despretensiosamente e pede ao corpo pra ser hospedeiro de suas trapaças e de sua infinda ironia. É tudo uma grande brincadeira? de imprecisão e de incertezas que estreitam os intestinos. -Onde encontraremos o extraordinário? -Bem aqui! Entre os escombros de nossas entrelinhas e das pequenas pedras embaixo da cabeça, porque insistimos em querer ver o céu de frente, de peito aberto pra escurecermos.

domingo, 25 de setembro de 2016

Juízo final

Nojo é um verbo que tirei do meu calendário, assumi o escárnio que os outros descartam em mim e escarro, cada cusparada é fecunda. Sou a palavra aberta, encruzilhada na América, de becos, vielas, ruas asfaltadas e esgotos a céu aberto, tudo queima perto da linha do equador e minha pele morena reluz melanina de sabor intenso. O olho permanece aberto habitando cada palavra desse vocabulário que transgride e assopra e grita, vocabulário mitológico, serpentes, medusas e harpocrate, eros me acerta certeiro no clitóris. Eu sou o horror de cada boca salivante que não beijei, anunciada pela trombeta do apocalipse, e a pomba gira e revira meus olhos pra me vestir de vermelho, boca e sexo, a língua afiada. Essa cidade é um deserto de almas vivas e desabitadas. Deus não me pune, mas me deu o inferno, eu não salvo ninguém, o céu é um condomínio fechado de fichas marcadas. Mas quando a pele arde e me olham torto, entortado mundo dos outros, eu lembro que gemer alto é gostoso, e a benção de todos os santos eu levo no pescoço. Na quaresma tive uma anunciação divina, a natureza dizia 'seja!!! minha filha, como poesia intrauterina e ria e ensine os outros a rir também', agora estou em paz, com deus e o diabo, pelo meu corpo, pela alma e pelo tempo, até o fim das eras.



sábado, 16 de julho de 2016

Entrelinhas e Reticências

Escapo
na aterrissagem do olho sobre a nuca
que se insinua feito palavra lânguida
eu penso, me chupa
me lambe, lambe a lambida minha
encharca comigo
o ouvido
e esses verbos absurdos de prazer
que dançam e dançam
nus sobre a pele aquecida
abre a boca
pra que eu penetre
com poesia fervida
que me escorre pelo pescoço
feito soluço
ritmado
um ah! ah!
sorria agora, mostre os dentes
se abra, me abro
e assista
eles tocam-se
despretensiosamente coléricos
com mil tentáculos
escapo
o olho entorpecido
se fecha, se abre
umedecido
segue o fluxo dos risos
estou fora de mim
e finjo controlar o magma
transbordando
entre as coxas
entrelinhas
entre no meio das coxas
intumescido
pulsando reticências. . .

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Anoiteço

Algumas vezes eu fico parada, quase imóvel, antes de dormir e por um instante consigo ouvir o acúmulo dos pequenos barulhos que ressoam e reverberam com o todo, com o resto das coisas, um barulho somado a outro num movimento circular. Fico então atenta e não consigo decifrar um som que se destaque e me concentrar nele, não consigo, ouço o acúmulo do tempo e das distâncias, fico atenta a esse som indecifrável, o chamo de 'o som do universo enquanto se movimenta', mas talvez, bem talvez, seja só o barulho dos meus pensamentos trafegando sem descanso enquanto tento acalmar cada célula do meu corpo-hospedeiro. Talvez eu abrigue em meus ouvidos, nesses minutos onde a madrugada se dissipa, o peso de cada gota de água enchendo o copo de alguém que ainda está com sede a essa hora, ou do atrito entre o asfalto e o os pneus de quem ainda está voltando pra casa ou do lençol fino roçando nos pés de quem está dormindo no chão logo ali na esquina, talvez também seja o sussurro baixinho das peles nuas que se encostam uma sobre a outra, essa melodia do cotidiano que ecoa nas paredes do meu quarto e me fazem ter a estranha sensação de que não estou sozinha, apesar de. Então acordo desnorteada com a sensação de que um outro corpo me habita ou uma outra vida, me pergunto se sou quem sou e não obtenho resposta, ainda quanto estou prestes a mover os cílios e deixar a luz penetrar na pupila, me pergunto se estou morta, se é assim viver, esse acúmulo...esse silêncio que não atinjo, por deus, ainda bem! Esse silêncio deve ser a morte. Me amanheço. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

Pupila

uma agudez me atravessa os olhos
entorpecem
e me sinto inflamada, embriagada
tão penetrante
como quando me penetras com palavras doces
e falsas
e com teu verbo no imperativo
cerro os dentes, travando um sorriso
que me escorre pelo corpo
lânguida e desmaio
em abraços gelados
que me aquecem por debaixo da derme
fecho os olhos
eles queimam, como eu
quando te sinto me observar imóvel e colérico
se estou prestes a gozar.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Garota Dinamarquesa

Procurei mentiras onde podia me abrigar
qualquer trapo me servia
algo que se escondia bem no meio das pernas
eu era uma mulher no corpo de um homem
e me adoecia as fantasias que usava
era ultrajante que aquele terno roçasse tanto na minha pele
feito urticária
aquela voz que não era minha me seguia aonde quer que eu fosse
a boca sem batom
o meu nome não era meu
quando eu sem querer não atendia não era por mal
eu não me reconhecia quando me via no espelho
eu só vivia nos sonhos
ou quando sozinha
tive outro dia um dos sonhos mais lindos
eu saía na rua nua e todos me olhavam
eu era eu e me reconheciam
me debatia com meu feminino aflorado
correndo pela cidade rindo
com um riso que abria feridas
pra deixá-las sangrar e cicatrizar
naquele sonho morei eternamente
jurei não acordar nunca mais
naquele sonho eu te beijava e tu me beijava de volta por quem eu era
e eu era a mulher que sempre sonhei ser e não podia
morri pra viver de sonhos.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Meu nome não é Maria


Meu clitóris enxerga toda a cegueira de vocês. Nos devaneios múltiplos pedem que eu grite enquanto gozo, querem ser avisados que seu ego vai morrer intacto, emudeço. Gozo silencioso. Descobri que poderia gozar aos cinco anos e me fizeram sentir nojo, agora pedem que eu abra as pernas sem pudor pro amor. Como, se eu aprendi a dizer que não gostava tanto assim? Como, se me tocar sempre foi um ato de condenação? Como poderia extrapolar as fronteiras da minha imaginação se os limites que me deram possuem arames farpados, muros mais altos que eu e soldados espreitando minha nudez, prontos pra atirar quando minha vulgaridade não os entretém. A boa moça da cidade não goza. A linda moça da cidade não caga. Tão fora da realidade que deve ser por isso que eu sempre penso estar num sonho, num filme, num livro. Padronizaram o sexo e todo desvio é perverso, o clitóris é banido. E há um exército de indícios escondidos, de arquivos queimados, de orgasmos culpados, de desencontros rítmicos. Foi impedido aos homens todo ato de elevada erotização por negar o feminino.