domingo, 21 de fevereiro de 2016

O sonho dentro de um sonho

Num sono que transcendeu minhas lembranças tua voz ecoava. Te tateei no escuro, avançando com cautela as curvas que teu rosto fazia e te senti sorrindo, igual aquele dia de domingo que a janela com um feixe de luz abria espaço no quarto pra iluminar aquela cena, uma iluminação turva me penetrava na boca entreaberta de meu sorriso ao te ver dormindo, e eu te lia com o coração de uma criança. Aquele foi o melhor tempo de abril, abriu entrecortante uma lembrança bonita que eu tenho de você, e eu tenho muitas, porque ainda mora no meu ouvido o teu sotaque e ainda sinto o sabor de minha ingenuidade, é que parece que quando te conheci minha carne se dilatou e eu fiquei maior, no movimento em C daquele abraço em ruas coloridas enfeitei teu afeto e você me trouxe novos sons, pra dançar sozinha em nossos desencontros e pra fazer correr no aeroporto tentando te achar. Tinhas um azul tão profundo que me fazia sentir o gosto do mar que nos separava, me acertava em cheio entre o pulmão e o estômago, e eu ia tirando em camadas, fio a fio, teus cabelos pra acertar tua boca mais uma vez, num eu te amo atropelado que nos encharcava os olhos, eu nunca vou esquecer quando em meus braços te vi chorar feito menino, e assim pra sempre tua lembrança será um sonho dentro de uma lembrança dentro de um sonho, você me deu o sonho, e enquanto tínhamos fôlego o vivemos, mas agora quando acordo estou nos braços de outro alguém. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Voinha mandou eu buscar dois dedo de óleo e uma xícara de arroz

Minha avó não sabe ler
mas aprendi a ler nos verbos dela
aprendi a soletrar carinho
cada palavra errada tinha um sabor diferente
de feijão gostoso, de dindin de biscoito, de panqueca e tapioca
ela nem sabia que levava a poesia nas mãos
ia tecendo fio a fio na sua máquina velha
tapetes coloridos pra enfeitar os pés
posso vê-la deitada sobre um sofá de fuxico
falando com a novela

E o seu jeito doido de atravessar a rua
de ter ciúmes
de se meter em briga
de criar teias complexas de amor
de ter uma saúde de ferro
mesmo com a osteoporose corroendo os ossos
Envolvida nas lembranças dos antigos namorados
dos vestidos, dos sapatos
do olhar azul lançado sobre ela na varanda de sua casa

Queria poder saber como foi pra ela pela primeira vez se sentir bonita
como foi que ela viu o lobisomem
como foi que ela criou numa casa de um quarto só minha mãe e meus três tios
como foi segurar nos braços sua primeira neta

Toda sua história embalada à uma cantiga antiga do sítio
lembrança de menina
que metia a mão na terra
e que fecundava sob o sol escaldante
uma poesia bruta, atropelada, de vocabulário mitológico
e que transbordava sob suor e lágrimas
o sentimento de seus melhores frutos

Por sua imaginação ilimitada eu tenho convicção que minha avó é uma artista
vó, como é envelhecer?